Criador de um dos personagens mais fortes do cinema brasileiro, o Zé do Caixão, o cineasta paulista José Mojica Marins é autor de uma obra instigante e de grande importância, que se encaixa no gênero horror e no cinema moderno com facilidade (o horror, na verdade, é um gênero que sempre impulsionou o moderno).
Mojica morreu neste 19 de fevereiro. Não resistiu a uma pneumonia. Tinha 83 anos, sete filhos de quatro mulheres diferentes, e um legado que não deve ser desprezado. Deixa pelo menos três obras-primas incontornáveis do cinema moderno brasileiro: “À Meia Noite Levarei Sua Alma” (1964), “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967) e “O Despertar da Besta/O Ritual dos Sádicos” (1969), mais um punhado de filmes no mínimo fortes como “O Estranho Mundo do Zé do Caixão” (1968), “Finis Hominis” (1971), “Exorcismo Negro” (1974), “Inferno Carnal” (1977), “Delírios de um Anormal” (1978) e “Encarnação do Demônio” (2008), a maior parte deles sem o personagem que o tornou famoso, mas ainda dentro do horror. Teria mais filmes marcantes se conseguisse filmar o que quisesse nos anos 1970 e 1980.
Foi mestre no horror, gênero que permitia um nível de invenção condizente com sua capacidade de fazer muito com pouco. Mas fez também comédias populares, geralmente sob pseudônimos. O mais conhecido deles é “A Virgem e o Machão” (1974), que assinou como J. Avelar. Fez filmes de sexo explícito nos anos 1980. Teve um relativo renascimento na década retrasada após o reconhecimento vindo de fora nos anos 1990, sobretudo nos EUA, onde era conhecido e amado (inclusive por Tim Burton) como o Coffin Joe, um reconhecimento que permitiu que voltasse a filmar com seu personagem mais famoso em “Encarnação do Demônio” (2008). Mas a verdade é que ao menos a persona que criou, o Zé do Caixão, nunca deixou de estar no imaginário do público brasileiro, seja por reprises de seus filmes, seja pelas inúmeras aparições na TV.
Mojica Marins sempre foi grande, desde o faroeste “A Sina do Aventureiro” (1958) com o qual estreou. Quer dizer, é um filme menor, certo, mas no qual já se nota a busca por um estilo que seria consolidado na trinca de obras-primas já mencionadas. Se não se reconhece a grandeza de seus melhores filmes (e são muitos, como pudemos ver no segundo parágrafo) não se reconhece muita coisa em cinema.
Com o nascimento do Zé do Caixão, no grande sucesso de bilheteria que foi “À Meia Noite Levarei Sua Alma”, Mojica se tornou um cineasta fácil de ser produzido, um dos maiores da Boca do Lixo paulistana, antes mesmo do auge dessa região central como polo produtor de cinema. Filmava com orçamento modesto e trazia retorno certo aos produtores, pelo menos nos anos 1960 (a perseguição da censura o prejudicou muito dos anos 1970 em diante).
Mas o que espanta nesses filmes com o Zé do Caixão é a filosofia que deles se desprende. O coveiro que desprezava pessoas tementes a Deus era na verdade um hedonista que procurava entender o sentido da vida de um ponto de vista carnal, enquanto procurava a mulher ideal para a gestação de um filho soberano, sem máculas. Para esse personagem, que muitas vezes era confundido com o dócil Mojica, as pessoas de fé eram inferiores, e deviam ser desprezadas (daí para o assassinato vai um pequeno pulo). Era um monstro, mas um monstro que nos fazia pensar.
A censura impediu a circulação de “O Ritual dos Sádicos”, mesmo depois de rebatizado como “O Despertar da Besta”. Entende-se o porquê dessa censura. O Brasil passava por uma de suas fases mais atrasadas, quase tão medieval e obscurantista quanto hoje, e o filme falava em experimentos com LSD, colocando-se em sintonia com os filmes da contracultura norte-americana (“The Trip”, de Roger Corman, teria com ele uma forte sintonia, mas é inferior ao filme de Mojica). “O Ritual dos Sádicos” é um dos maiores filmes da história do cinema brasileiro também por captar um momento de contracultura mundial que chegava a um perigoso impasse.
Eis o tamanho de José Mojica Marins na história do cinema brasileiro: um gigante.
* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema