A história do médico com a habilidade de falar com animais, entendê-los em suas mais secretas ambições, e curá-los de ferimentos e doenças, misteriosamente, sempre representou fracasso no cinema.

Primeiro aconteceu com a versão de 1967, “O Fabuloso Doutor Dolittle”. Protagonizada pelo grande Rex Harrison e dirigida pelo excelente Richard Fleischer (que vinha do sucesso “Viagem Fantástica”, de 1966), com um orçamento grande e muita publicidade, representou um fracasso tão grande e inesperado que acabou permitindo aos jovens diretores a abertura de portas em Hollywood. Os produtores não sabiam mais o que o público queria ver e deram oportunidades para jovens fazerem filmes. Deu na Nova Hollywood de Scorsese, Coppola e De Palma.

Depois foi Eddie Murphy, com seu “Dr. Dolittle” (1998). O ator ainda era quase uma garantia de sucesso (apesar do fracasso de “O Negociador”, seu filme anterior. Fez sua versão, dirigida por Betty Thomas, e viu um potencial de bilheteria jamais confirmado. Apesar de não ser exatamente um fracasso do ponto de vista do dinheiro investido, é um fracasso perto do que o esperado na época.

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Surge agora este novo “Dolittle”, protagonizado pelo Homem de Ferro Robert Downey Jr. e dirigido por Stephen Gaghan. E já chega cercado de críticas negativas, tendo tudo para ser largamente considerado a pior das três versões (algo ainda mais inesperado, visto a baixa qualidade das outras).

Mas podemos observar com maior cuidado. Há motivo para tanta decepção? Primeiramente, a esta altura do campeonato, seria uma surpresa se fosse bom. E a partir desse prisma, podemos notar que o filme tem lá suas qualidades, embora breves, quase insignificantes. A começar pela animação inicial, charmosa, que nos introduz ao tema de modo lúdico.

Depois tem a presença de Robert Downey Jr, que apesar de estar muito distante dos outros protagonistas, ainda é uma força em cena (vá lá, uma força diminuida pela pobreza da narrativa). Há, sobretudo uma passagem interessante entre o Dolittle e os adolescentes Tommy Stubbins (Harry Collett) e Lady Rose (Carmel Laniado), com o doutor transformado em selvagem pela vida com os animais, mesmo que dentro de sua casa, e o encantamento da menina com os animais que encontra (incluindo o gorila assustado que abre a porta). Mas isso está no começo. Depois, um quadro de Joseph Turner, um gênio da pintura inglesa, com certa importância na trama.

O que mais? Talvez, de bom, um certo humor trazido pelas novas possibilidades tecnológicas. Mas estas mesmas possibilidades, como quase sempre, representam também uma terrível limitação, porque deixa tudo muito artificial, falso e tolo. Animais desenhados num computador nunca serão como os animais reais. Se algumas piadas funcionam apesar disso, não redime o filme de ser dependente da tecnologia, quando os filmes mais antigos, principalmente o de 1967, eram dependentes dos humores animais (por vezes invisíveis para quem vê o filme pronto).

E de resto é aquela abundância de sobrevoos com a câmera nas cenas de aventura, algo que chamo de câmera-pássaro, uma série de resoluções francamente infantis, algo que os anteriores também eram, mas em doses mais comedidas, e a impressão de que todas as aventuras de Hollywood se parecem com “Piratas do Caribe”.

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema