Quando vi “Era Uma Vez… em Hollywood”, novo filme de Quentin Tarantino, já no dia em que estreou em nosso circuito comercial, fiquei encantado pela presença de Margot Robbie como Sharon Tate. Não por ela ser bela e eu ser homem. Mas por estar diante de uma das grandes interpretações recentes de uma atriz, não importando, no caso, se o tempo em cena dela seja pequeno.

Para interpretar Sharon Tate no cinema, era necessário ou uma desconhecida, ou alguém que pudesse chamar a atenção do espectador para ela, ao menos por alguns minutos. É precisamente o que faz Margot Robbie na cena em que sua personagem, Sharon Tate, entra no cinema para ver um filme estrelado por ela mesma, e se emociona ao ver que o filme é divertido, e que a plateia está gostando. Seu olhar, nesse momento, vale mais do que mil linhas de diálogo, pensei, e esse é um dos momentos raros que fazem do filme de Tarantino um dos melhores lançados no Brasil em 2019.

Poucos dias depois (talvez já no dia seguinte), tomo conhecimento de uma reclamação que me pareceu estranha: a de que Margot Robbie e as mulheres teriam sido desrespeitadas por uma atuação assim, com pouquíssimas falas. Algo na linha da presença muda de Anna Paquin em “O Irlandês”, de Martin Scorsese. Já li por aí que mostrá-la com os pés sujos também seria um desrespeito, o que, francamente, nem vou comentar.

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Aí vejo a alegria genuína com que Robbie abre o envelope e percebe que o prêmio de roteiro que tem de anunciar saiu para Tarantino, e a alegria cúmplice com que ela ouve os agradecimentos de seu diretor, que, de resto, já fez filme sobre uma mulher empoderada antes que o termo se fortalecesse (“Kill Bill), um filme quase feminista (já que é impossível ser feminista em um filme dirigido por um homem) com Pam Grier de protagonista (“Jackie Brown) e um filme que termina com uma vingança meio forçada de mulheres contra um dublê inescrupuloso (“À Prova de Morte).

E onde entra a crítica nisso? Entra na necessidade de se criticar o que está errado no movimento #MeToo, para que ele não se enfraqueça com eleição de inimigos errados ou perda de foco. Nem preciso dizer o quanto esse movimento é essencial para corrigir uma série de problemas graves, incluindo a alta taxa de feminicídio no mundo. Também acredito que a presença de mais mulheres em situações de poder (de preferência, em número maior que o de homens) trará uma mudança benéfica (mais que isso, necessária) na ordem mundial.

O #MeToo precisa se tornar cada vez mais forte e mais presente nas sociedades ainda dominadas por uma espécie de patriarcado mutante, que se torna mais ou menos selvagem dependendo do período em que vivemos. Mas para isso, de acordo com o que eu mesmo defendo no texto anterior desta série sobre a crítica, é necessário que tal movimento seja criticado por quem acredita no politicamente correto apesar de seus exageros; de preferência, ser criticado por mulheres feministas (como já vem sendo), sempre com cuidado, e sempre com o propósito de fortalecê-lo.

Tenho consciência de que há muita gente mal intencionada atacando o #MeToo, assim como tem oportunistas (sempre homens, quase sempre heterossexuais, mas não só) se fazendo passar por entusiastas do movimento para se dar bem, ganhar curtidas, participar da lacração que elege subcelebridades nas redes sociais. Há também os ingênuos, que tendem a ser os que mais exageram nas críticas ao que entendem como machismo ou misoginia. Tudo isso faz com que essa crítica ao #MeToo seja ainda mais difícil de ser realizada, porque pode ser confundida com uma bandeira pelo politicamente incorreto (essa excrecência geralmente defendida por egoístas e manipuladores). Mas tenho muito receio de que o movimento se enfraqueça se algo não for feito para diminuir os danos colaterais dos cancelamentos injustos motivados pelos falsos inimigos escolhidos no tribunal das redes sociais.

Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema