Em 1952, o escritor Italo Calvino publicou uma obra-prima chamada “Visconde Partido ao Meio”. Na trama, um visconde é atingido por uma bala de canhão durante uma batalha, logo no primeiro capítulo, e passa a viver dividido em duas partes que se repelem. Uma parte é muito boa, quase santa, só pensa em bondades e na justiça. A outra, pelo contrário, não se conforma com sua condição e trata de destruir, mental ou fisicamente, tudo por onde passa. Calvino sabia que um ser humano não tem como ser movido apenas por bons sentimentos. É do humano a falha, a injustiça, o engano, mesmo que suas intenções não sejam más.

Não é difícil lembrar desse livro ao vermos “Um Lindo Dia na Vizinhança”, de Marielle Heller. isso porque neste filme que deu a Tom Hanks mais uma indicação ao Oscar, seu personagem, o apresentador de programa infantil Fred Rogers, tem a bondade como meta e base de sua vida. Lloyd Vogel (Matthew Rhys) é seu contrário, um jornalista que fere com as palavras e, sem ser visivelmente antipático, consegue criar inimizades e climas ruins por onde quer que passe. É do tipo que deixa o pai que acabou de ter um piripaque grave no hospital e vai trabalhar, sendo que é um trabalho que ele mesmo já deu sinais de desprezar. Sabe que está fugindo, mas não dá o braço a torcer de sua fraqueza.

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Do encontro entre Fred Rogers e Lloyd Vogel surgem algumas oportunidades para que cada um melhore, se humanize, no contato com o outro. Mr. Rogers está tão interessado em Lloyd que até irrita. As pessoas no geral não gostam de serem escrutinadas por um interlocutor. O interesse precisa ser genuíno, mas não científico, não debruçado como se quisesse dissecar o outro. Do outro lado, Lloyd é curioso, como todo jornalista, mas blasé. Procura disfarçar o tempo todo seus interesses, sua compaixão. O encontro servirá para nos mostrar que Mr. Rogers é também irritante, e Lloyd é também uma pessoa boa.

Mas no filme só um se modifica. Essa é a diferença entre “Um Lindo Dia na Vizinhança” e “Visconde Partido ao Meio”. Onde Calvino imagina uma história impossível para mostrar a realidade do ser humano, Heller e os roteiristas – Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue – partem da realidade das relações humanas para chegar ao impossível, ou seja, à representação de um homem perfeito, por mais que sua esposa nos informe que ele tem lá seus defeitos (aos nossos olhos, não parece).

Na questão estrutural, há um problema que não se consegue ultrapassar, e é o mais incomoda no filme. Ao emoldurar esse retrato de um homem de TV em um formato televisivo do início dos anos 1990, Heller alterna uma textura do videotape da outra época com o cinematográfico de hoje, paralelamente. Mas em raras ocasiões sua imagem é realmente cinematográfica. Ela depende do delírio para surgir, como quando Lloyd imagina a mãe no leito de morte, como também em um ou outro momento de intimidade entre Lloyd e sua esposa Andrea (Susan Kelechi Watson). Essa falta de densidade e estatura cinematográficas prejudica o jogo de contrários do filme e arranha, assim, sua estrutura. 

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema