*Atenção: análise repleta de spoilers da terceira temporada de “Black Mirror”
Estreou na última sexta-feira, 21, a terceira temporada de “Black Mirror” na Netflix. A série conta, a cada episódio, uma nova história sobre um mundo futurista onde a tecnologia levou seres humanos a ultrapassar alguns limites.
A primeira e a segunda temporada foram produzidas e exibidas no Reino Unido. Quando foi cancelada, após apenas seis episódios (e um especial de Natal), a Netflix decidiu comprar os direitos da produção e encomendou 6 episódios para essa nova temporada.
É provavelmente isso o que explica a leve mudança de tom na série. “Black Mirror” ficou conhecida não apenas pelas tramas bem desenvolvidas, roteiros inteligentes e direção primorosa, mas, principalmente, pelo pessimismo em sua percepção do que o futuro nos reserva.
Charlie Brooker, criador da série, já disse em entrevistas que “Black Mirror” não é um manifesto contra a a tecnologia, mas um aviso do que ela pode nos trazer. Além da crítica social que toda boa ficção científica carrega, os primeiros episódios de “Black Mirror” terminam deixando um gosto amargo no espectador: a sensação de que a humanidade perdeu o rumo e está em um caminho sem volta.
Em comparação com o que se viu antes, a terceira temporada é bem mais otimista, porém. Isso não significa que a série perdeu qualidade, longe disso. O tom mudou, ficando um pouco mais palatável e menos depressivo, mas a crítica social e o medo de que a tecnologia possa nos levar longe demais, esses, sim, continuam lá.
O primeiro episódio, “Perdedor”, é um claro exemplo desse novo positivismo. Na história, uma mulher obcecada pelas aparências e pelo julgamento das redes sociais acaba, sem perceber, embarcando numa viagem de autodescoberta que termina livrando-a das amarras de um mundo falsamente pintado por selfies do Instagram.
Ao fim do episódio, a personagem de Bryce Dallas-Howard encontra uma redenção que certamente não encontraria se este fosse um capítulo das primeiras duas temporadas. Basta lembrar “Quinze milhões de méritos”, o segundo episódio da série e que percorre o caminho contrário com seu protagonista: um homem idealista, determinado a destruir o sistema, mas que termina como mais um refém do poder e do dinheiro.
O clima mais ameno continua em episódios como “San Junipero”, o quarto desta nova temporada, que conta uma história de amor (isso mesmo, um romance) ambientado num futuro em que a tecnologia criou um mundo artificial aonde os mortos podem ir e “viver para sempre”. Uma espécie de estado constante de sonho.
Trata-se de uma realidade simulada em que pessoas à beira da morte podem fazer um “backup” de suas consciências e viver para sempre numa cidade cheia de clubes, praias, baladas e relacionamentos, onde ninguém envelhece e ninguém sente dor. Com um aparente “final feliz” (dependendo do seu ponto de vista, é claro), este é certamente o melhor episódio dessa nova temporada, mesmo sendo tão otimista se comparado com o que veio logo antes, o perturbador “Cala a boca e dança”, por exemplo.
O fato de “San Junipero” ter um clima mais leve do que o de outros capítulos, porém, não é o que o faz tão bom. Na verdade, o destaque desse episódio é o modo como ele explora o que o formato de antologias tem de melhor. Sem se prender a uma trama fixa, cada episódio de “Black Mirror” pode embarcar em histórias diferentes, com ritmos diferentes e gêneros diferentes, quase sem limites.
“San Junipero” começa e passa um longo tempo acompanhando duas garotas numa danceteria da década de 1980. Leva tempo até entendermos que aquilo é uma realidade simulada no futuro, mas esses longos minutos com olhos fixos no passado trazem um delicioso respiro para a série. Questões filosóficas e críticas sociais ficam em segundo plano, quando tudo o que nos interessa é a relação daquelas duas personagens.
Esse é o tipo de respiro que uma série como “Game of Thrones”, “Walking Dead” ou qualquer outra não pode se dar ao luxo de ter. Mas embora seja muito bem escrito, revigorante e certamente o melhor da temporada, o episódio “San Junipero” também evidencia, por outro lado, um grave problema da série que a acompanha desde o começo.
“Black Mirror” não é, digamos, a mais realistas das séries sobre tecnologia. É louvável o esforço dos criadores em comentar os dias atuais com um vislumbre do futuro, assim como as melhores obras de ficção científica sempre fizeram, de “Star Trek” à recente “Westworld”.
O problema é que, para criar esse vislumbre do futuro, “Black Mirror” ignora alguns conceitos muito básicos do mundo real, e que, na prática, poderiam impossibilitar a chegada desse futuro. Essa decisão, que é totalmente compreensível, se torna especialmente problemática quando estamos falando de uma série voltada justamente para um público que gosta e que deve entender pelo menos um pouco de tecnologia.
Um bom exemplo é “Engenharia reversa”, o quinto episódio dessa terceira temporada. Na trama, o todo-poderoso-estado-maior decide colocar chips (dois elementos mais clichês da história da ficção científica) no cérebro dos seus soldados para torná-los mais suscetíveis ao combate e à guerra. Um dos artifícios é fazer com que os soldados vejam o inimigo como monstros, quando, na verdade, são apenas seres humanos como eles mesmos.
O episódio faz um excelente comentário contra a xenofobia e a forma como grandes potências lidam com a crescente crise de refugiados, que, por virem de uma cultura diferente, são tratados como uma infestação de baratas. É um ótimo argumento para uma crítica social, mas que ignora elementos importantes da realidade que poderiam torná-lo ainda mais relevante.
Afinal, nesse futuro, o exército pode apagar fragmentos da memória dos soldados como se fossem arquivos de computador – o que, como sabemos, é impossível, já que nosso cérebro não cataloga lembranças dia por dia. A tal guerra contra as tais “baratas” não é muito bem explicada, generalizando a humanidade em dois lados opostos sem um diferencial nítido.
O mesmo pode ser dito do episódio que abre a temporada, “Perdedor”, que parte do princípio de que, no futuro, as pessoas poderão dar notas de 0 a 5 umas às outras pelas redes sociais. Esse é um conceito que Mark Zuckerberg e diversos empresários do setor já refutaram diversas vezes, cientes do que um sistema de avaliação como esse poderia causar nas relações entre as pessoas.
São pequenos deslizes na forma como a série imagina o futuro da tecnologia que colocam em xeque o discurso que cada episódio tenta impor. Não significa que esses cenários são impossíveis de virar realidade, muito pelo contrário. Até mesmo redes sociais com base em notas podem surgir no mundo real, mas certamente não da forma como “Black Mirror” imagina.
É natural que uma obra de ficção científica abdique de certo realismo para poder passar a mensagem que interessa de forma mais clara. Mas alguns detalhes poderiam ser melhor trabalhados. Falar de tecnologia, afinal, exige realismo, a fim de que as maravilhas da ciência não sejam confundidas com pura e simples mágica sem explicação.
Trata-se de um deslize muito pequeno em comparação com outros grandes momentos dessa temporada, como o brilhante episódio “Versão de testes”, sobre um videogame que usa os medos contidos no nosso cérebro para nos aterrorizar; e o reflexivo “Odiados pela nação”, o último episódio da temporada e um dos mais envolventes.
No fim das contas, “Black Mirror” é um excelente ensaio sobre o “lado negro” da tecnologia. Um espelho distorcido que mostra muito bem os tons escuros da realidade, mesmo que, nesta terceira temporada, possamos ter visto alguns reflexos mais brilhantes. No fim das contas, o vilão da história não é a tecnologia, mas sim o uso que fazemos dela.